Publicações/Mídia - Da aldeia para o mundo: escrita indígena, autoria e múltiplas leituras



Inês Caroline Reichert


Profª Líder do Projeto de Extensão Múltiplas Leituras, da Universidade Feevale


Em uma pequena peça de madeira, classes, livros e um quadro verde denotam que se trata de uma sala de aula. Crianças de diversas idades dividem o espaço, o material e às vezes, até mesmo a cadeira. Escutam atentas, desenham e escrevem, envolvidas em uma atividade ministrada por uma professora do curso de Letras da Universidade Feevale.  Uma sala de aula como outras tantas em nosso País. No entanto, nessa cena, muitas diferenças: a língua falada não é o Português, muitos dos materiais utilizados também não estão presentes na maioria das escolas e os cabelos escuros dos alunos e alunas revelam uma origem diversa e única. Localizada na comunidade Kaingang Por Fi, em São Leopoldo, trata-se de uma Escola Indígena, na qual crianças e professores são indígenas e o idioma principal é o Kaingang, embora o Português também seja ensinado e estudado.  Para a maioria das pessoas aqui da região, a presença de indígenas no meio urbano é uma surpresa. De fato, ainda é grande o contingente da sociedade brasileira que ignora a imensa diversidade de povos indígenas que vivem no país, somando uma população de 734.000 pessoas (IBGE/2000). Destes, estima-se que 10 a 15% se encontram em áreas urbanas. Em São Leopoldo, a comunidade Kaingang Por Fi estabeleceu-se com cerca de 20 famílias, passando a morar, após muita luta, em uma área de 2,5 hectares, no bairro Feitoria.
Desde 2004, a Feevale desenvolve ações de extensão junto à comunidade, através do projeto “Múltiplas Leituras: povos indígenas e interculturalidade”. Contando com a participação de acadêmicos, especialmente estudantes das Licenciaturas, o “Múltiplas Leituras” tem como objetivo contribuir para a efetivação dos direitos e o reforço da identidade étnica da comunidade, a partir da atuação dos cursos de Pedagogia, Artes Visuais, História, Direito e Letras. Naquela tarde, em uma atividade que se repetiria por muitas vezes, um acadêmico do curso de Letras entrevistava e registrava a fala do professor Dorvalino, que, do lado de fora da sala de aula, lhe narrava os mitos e histórias que possuem os Kaingang sobre a origem do mundo. Sobre essas narrativas, as crianças desenharam suas interpretações, material que se pode apreciar no encarte especial produzido nesse número do Jornal Comunidade, em Português e Kaingang.
O leitor e a leitora conseguem, certamente, avaliar a inovação dessa publicação bilíngue, em Língua Indígena e Português, de circulação acadêmica e comunitária. No entanto, talvez desconheçam a dimensão e o significado dessa Autoria Indígena para a sociedade não-indígena e para os próprios povos indígenas, cuja transição de uma Língua baseada na Oralidade para a Língua Escrita foi resultado de longo processo de luta e conquista. É sobre esse processo que apresento algumas discussões, no sentido de situar os textos indígenas que agora se traz a público, contribuindo para uma compreensão sobre quem são esses autores que agora escrevem, como escrevem e o quê se escreve.
Uma primeira constatação se evidencia quando uma busca breve por publicações indígenas é realizada: essa é uma textualidade que não é solitária, mas que compõe uma emergente Literatura no país, juntamente com centenas de materiais escritos de diversas formas. Uma autoria que é composta hoje, além do uso da escrita alfabética, pela câmera de vídeo, pelo computador e em alguns casos, pela Internet. Assim, não apenas livros, mas jornais, revistas, desenhos, pinturas, vídeos, CDs, esculturas, mobiliários, entre outros artefatos da cultura, formam o acervo de Autoria Indígena contemporânea no Brasil.
E quem são os autores e as autoras dos Livros da Floresta, como os próprios indígenas gostam de chamar a seus textos? São os professores e as professoras indígenas que se tornaram autores e autoras para que seus estudantes tenham o que ler em língua indígena. Na paisagem constituída por essa história, a escola - uma instituição não indígena, estranha e exógena às culturas tradicionais - ocupa lugar central. A imagem de uma escola indígena como possibilidade de espaço de construção da autonomia indígena, isto é, como instituição de afirmação da especificidade indígena no Brasil, é recente, e pode ser localizada na década de 70. Fruto de um processo histórico do qual participaram diversos agentes, é preciso lembrar que antes desse período a escola era um instrumento colonizador, de ação antiindígena. Atualmente, a questão da presença da escola na aldeia como forma de dialogar com o mundo externo à comunidade indígena – e dessa forma, efetivar direitos – é presença constante na maioria das pautas de reivindicação de povos indígenas no Brasil.
Os professores e professoras estão a atuar como mediadores do acesso à escrita em suas comunidades, atuando na reorganização sócio-cultural e econômica como um todo. Pode-se afirmar que os povos indígenas, a partir da escola, estão a ocupar novamente o solo, posto que é da aldeia que se fala. De suas gentes, de suas línguas, de suas lutas, antigas e novas. Em relação aos povos indígenas, se escreve principalmente para que os mitos, histórias e línguas de suas culturas não se percam.
Nesse sentido, apesar de a Literatura Indígena estar sendo escrita da aldeia e para a aldeia, paradoxalmente, é em sua territorialidade que reside sua universalidade: se escreve também para ser reconhecido por um Outro. A Autoria Indígena publica e faz circular as palavras da comunidade para que esta se faça conhecer ao mundo que a envolve. A escrita é, portanto, política, porque reordena a coletividade e parte de uma territorialidade, conquistada ou simbólica. Uma escrita coletiva porque diz “nós somos assim, esta é nossa identidade”.
O que intentei demonstrar é a compreensão de que um texto se inscreve como literatura também como resultado de uma prática social. Para os povos indígenas, a produção de uma escrita - ou de um vídeo, ou de um site, qualquer que seja a forma que a palavra assume para circular – tem profundas e imbricadas relações com a história da reconquista e demarcação de suas terras, com a conquista da escrita e das práticas de leitura nas Línguas Indígenas, com a aquisição e o domínio da Língua Portuguesa, enfim, com as lutas do tempo dos direitos. A Literatura Indígena nasce, enquanto letra, de seu espaço e de sua territorialidade, e desse solo parte para a conquista simbólica do diálogo com o Outro, a sociedade não-indígena, abrindo, para nós, o acesso a Múltiplas Leituras.


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